quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Maltrapilho


Paro por aqui.
Não posso passar pela porta dos perfeitos.
Proíbem meu jeito, defeito não é bem aceito aqui.
Acesso negado.
Quero te seguir.
Será que me deixam aproximar de Ti?
Tocar no Teu manto, comer nesta mesa, beijar Teus pés.
Sentir o amor que não tem ressalvas, que salva, que é meu,
que me chama a estar contigo
E assim posso esperar.
Que seja aquela mesma esquina,
ou mesmo do lado de fora.
Ninguém merecerá.
Mas Tua graça me conforta,
que deixa ao fim Te alcançar.

Composição: Maninho/Bruno Camurati

Eternidade

 
 
Passam os dias frios como vento, enquanto o sol aquece momentâneo, sinal de que ali está, pronto para o que for. Entre o movimento da estrada, uma banda sonora que se constrói de pequenos sons subtis, quase surdos. Um pulsar ao mesmo tempo intenso e sereno. Passaram as horas sem que me desse conta de que aconteceram imensas passagens, entre sentimentos e visões de imagens que teimam em desaparecer demasiado depressa.

Se pudéssemos congelar, por um momento, a eternidade que chegou a nós, para nos agarrar sem nos querer mais deixar. E teimosamente, preguiçosamente, descuidadamente, vamos caindo em peças frágeis, à medida que os nossos passos desenham sombras na calçada.

A eternidade tem um tempo preciso. É dom e é roubo. É tudo e nada. É olhar que sabe ver, horizonte que sabe permanecer. 
 
Neto Quirino

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Fé e coerência

Sob muitos aspectos, a questão de testemunhar a Cristo na nossa cultura atual será uma pergunta diária e um desafio constante para aqueles cristãos que se preocupam em marcar alguma diferença, no meio em que vive.

É fácil cair instantaneamente em discursos mais moralistas, que acabam já por ser lugares-comuns, que podem ter tanto de razão como de injustiça. Frases do gênero "vão à missa e são piores do que os outros" acaba por ser um refrão que não me agrada. Por dois motivos: porque, de fato, podemos ver que cumprir uma série de preceitos de religião acaba, em alguns casos, por estar muito desligado das opções e do estilo concreto de vida; e, por outro lado,  não me agrada porque é extremamente redutor e coloca as pessoas que vão à missa todas "dentro do mesmo saco", como quem fala de fora, sem experiência, o que me parece sempre pouco honesto.

A grande questão está, a meu ver, naquilo que poderemos chamar o carácter performativo do ser cristão. O que "forma" o cristão, o que identifica um cristão, qual a sua essência? O mais difícil de explicar é que tudo, em resumo e no essencial, se condensa no fato de que ser Cristão é pertencer a Cristo de modo total. Ir à missa, cumprir os mandamentos, viver segundo as orientações da Igreja é apenas a parte externa - e sempre importante - daquilo que interiormente se vive. 

O que define o cristianismo, desde a sua origem é o fato de que Deus se manifesta e comunica como Pessoa, em Jesus. E se existem pessoas, existem relações. O cristianismo é uma religião de tato e contato, de olhar, ouvir, dialogar, caminhar juntamente. É a religião que fala através do gesto, em que a Palavra é Carne, em que dizer e fazer coincidem. Ao cristianismo pertence uma extraordinária força de síntese e comunhão, de unificação da vida naquilo que é fundamental, o amor que se expressa e concretiza em tudo.

O amor de Deus não é um conceito, mas sim uma experiência. Sem oração, não se tem essa experiência, sem arrependimento, não há conversão, sem amor, não há serviço. Daí que o cristão é essencialmente um apaixonado pelo Deus que conhece, e, por isso, é um apaixonado pela vida, é responsável pela felicidade dos outros.

O cristianismo é frequentemente criticado, e com razão, por uma forma "burguesa" de estar, quando se chega ao ponto de ficar instalados no que se conhece, e aí as regras começam a funcionar como critérios de pertença, sem que isso implique necessariamente uma adesão de fundo, profundamente espiritual e existencial. No fundo de tudo isto, fica instalado um dualismo entre o que se é e o que se faz. Está a falhar qualquer coisa importante.

Um cristão centrado em Cristo vê as regras como uma consequência, porque apreende existencialmente o seu sentido: a missa é participação em comunidade do mistério da presença de Deus no meio de nós e da comunhão que isso implica. As regras nascem de uma percepção da responsabilidade que cada um tem na qualidade humana do seu modo de estar na vida e nas relações, marcadas pela verdade, compromisso e  transparência. A justiça, a honestidade e a solidariedade não são "modas sociais" mas a necessidade que cada pessoa seja respeitada na sua dignidade, como um irmão, o não ser capaz de tolerar estar bem, vivendo ao lado de situações de injustiça e dor.

Toda a coerência de vida cristã nasce desta relação que me identifica com Jesus. E preenche de tal modo a vida que me torna capaz de superar as críticas, as incompreensões, o não fazer como todos fazem. Marcar a diferença pela autenticidade de vida é um desafio difícil, mas quem realmente quer viver assim, também não lhe faltará a graça para o conseguir. No fundo, um cristão é um místico, e a mística não está, de todo, reservada a quem está fechado num convento ou fugiu para o deserto.
Neto Quirino

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Movimento e leveza


Depois de uns dias de arranque do ano, convivo com sentimentos serenos. É uma graça enorme podermos encarar o futuro com esperança e motivação. Não é que, muitas vezes, não nos faltem motivos de preocupação. Mas podemos gastar-nos inutilmente em antecipações que não nos ajudam a viver o presente. Faz falta saborear o que temos a cada instante.

Contudo, a expressão "Como se não houvesse amanhã" pode enganar-nos, porque nos fecha no limite do que simplesmente acontece. Falta-lhe promessa. Estar no presente não pode nem deve evitar um futuro que confiamos ser feliz. Sem esta esperança, o prazer presente pode chegar a ser aparente, ou até uma fuga. 

Daí que nos consideramos constantemente em passagem, como quem agarra flores pelo caminho, ficando apenas com a sua beleza diante dos olhos. É passagem contínua e paciente para algo bonito, por entre paisagens que descrevem o que realmente somos: eternidade.
 
Neto Quirino